Introdução
As
periferias das grandes metrópoles brasileiras originaram-se nas décadas de 30 e
40, como consequência do processo de industrialização e urbanização. A
periferia paulistana se constituiu num primeiro momento pela ocupação
desordenada dos espaços metropolitanos pela população rural, numa disputa por
espaço urbano em busca de trabalho, nem sempre bem remunerado, aliado à
histórica dificuldade do poder público em criar políticas habitacionais adequadas.
Fatores que levaram ao crescimento dos domicílios em favelas.
No
final do século XVIII, os primeiros assentamentos eram chamados de “bairros
africanos”, áreas onde ex-escravos sem terras e sem opções de trabalho
morariam.
As
favelas mais modernas apareceriam somente na década de 1970, devido ao êxodo
rural.
Após
os anos de 70 e 80, com a globalização econômica apoiada pelo projeto
neoliberal, a “periferização” se ampliou para incluir setores da cidade cujos
moradores foram atingidos por um processo de “proletarização”.
A
ausência de políticas públicas de educação e saúde, saneamento, entre outras,
aliada a má distribuição de renda e do déficit habitacional no país tornam a
periferia um espaço privilegiado de pobreza e marginalidade. A violência e o
tráfico de drogas tornaram-se problemas de cunho social.
A
origem etimológica da palavra favela encontra-se na Guerra de Canudos. A
pequena cidade de Canudos foi construída junto a alguns morros, entre eles o
Morro da Favela, assim batizado em virtude da planta Cnidoscolus quercifolius (popularmente
chamada de favela) que encobria a região. O nome favela ficou conhecido e na
década de 1920, as habitações improvisadas, sem infraestrutura, que ocupavam os
morros passaram a ser chamadas de favelas.
O
presente artigo visa apresentar por meio de uma perspectiva crítica, a
literatura crescente e desafiadora proveniente de locais de extrema pobreza
advinda da globalização.
Analisamos
a expressão “literatura marginal”, bem como os artistas dela existentes:
moradores de rua, catadores de papel e escritores ditos periféricos.
Enfim,
cidadãos que serviram de base para nosso estudo e entendimento no campo
literário de uma “cultura da periferia”.
O
objetivo desta pesquisa é a compreensão da literatura e suas expressões
artísticas na sociedade e nas periferias.
As
principais citações deste artigo serão de poetas e escritores independentes,
que tiveram suas vidas modificadas pela arte e lutam para difundir a
“literatura marginal” não só no Brasil, mas no mundo todo.
LITERATURA DA PERIFERIA
O ARTISTA CIDADÃO
Literatura:
sf 1. Arte de compor escritos, em prosa ou em verso. 2. O conjunto das obras de
determinado assunto.
Marginal:
adj 1. Relativo à margem. 2. Que está a margem – sm. Pessoa mais ou menos
delinquente ou anormal, que vive à margem da sociedade.
(Melhoramentos)
“Como
sempre acontece a todo o momento feito por pessoas que estão ‘a margem’ as críticas
vieram aos montes também, fomos taxados de bairristas, de preconceituosos, de
limitados, e de várias outras coisas, mas continuamos batendo o pé, cultura da
periferia feita por gente e ponto final, quem quiser que faça o seu, afinal
quantas coleções são montadas todos os meses e nenhum de nós é incluído? A
missão que todo movimento tem não é de excluir, mas sim de garantir nossa
cultura, então fica assim, aqui é o espaço dos ditos excluídos, que na verdade
somam quase toda a essência do gueto”.
(Ferréz,
2004)
A
cultura da periferia reúne inúmeros poetas, ficcionistas, cronistas e
ilustradores provenientes de bolsões de pobreza das grandes cidades brasileiras.
Fatores
como problemas de ordem político-social impulsionam os jovens a se expressarem
por meio de mensagens sobre drogas, abuso, morte, violência, discriminação
contidas nas letras de música, poesia e em obras diversas. O enfrentamento de
tais problemas leva a protestos sociais.
Na
literatura os protestos fazem parte de uma vertente cultural mais ampla.
Expressa por meio de autores diversos adquire importância de movimento
artístico e fenômeno sociocultural, refletindo transformações econômicas e
sociais das últimas décadas.
Usa-se
a expressão “literatura marginal” para definir as obras literárias produzidas e
veiculadas à margem do corredor editorial. A disseminação de tal termo no
cenário cultural contemporâneo ocorreu com a revista Caros Amigos, que publicou
nos anos de 2001, 2002, 2004 e 2011 matérias com os nomes de quase cinqüenta
autores que vivenciaram a marginalidade e levam consigo uma ampla bagagem da
cultura “marginal” (expressão de extensa tradição na história literária
europeia desde o século XIX, mais que esteve em grande evidência no cenário
brasileiro durante os anos de 1970 e 1980).
Uma
das importantes referências para a literatura marginal, o compositor,
violinista e poeta independente Hugo Paz, 23 anos, lançou em 2011 seu terceiro
livro de poesias, “Rastros de Palavras”. Responsável pela coordenação de diversos
projetos na periferia de São Paulo, o autor destaca-se pelo seu posicionamento
como ativista cultural.
“Na
verdade era uma letra de música que transformei em poesia. Porque naquela época
eu comecei a escrever algumas letras de rap, e fazia grafites desenhados no
papel, inclusive participei com meus trabalhados da Semana de Arte e Cultura do
Instituto Butantan”, explica Paz.
Recentemente,
Paz publica sua terceira obra “Para desenhar outros fatos”, nela o autor assume
um compromisso poético com a informação por meio de uma nova política estética
literária. Nela está incluso o poder de transformar o futuro. Retrata temas
como o mundo nu, de becos sem saída, dos ritos e riscos da metrópole.
“Giramundo”
Nas ruas desse
Seu Mundo de Vidro
As paredes giram
Ao redor das casas
E observam
As cenas
Compostas no moinho
Das incertezas.
A pistola
Com suas dúvidas
Calou-se
Desfrutando a oração
Do dia.
Os viciados em poesia
Bebiam mais um gole
Daquele novo poema.
O universo daquela tarde
Pegava carona
No bonde das ilusões
Sua próxima parada
Era…
Para outra dimensão.
Os
artistas como Paz que começam a se envolver no hip hop, escrevem seus primeiros
poemas, para então tornarem-se escritores independentes.
O
hip hop tem sua vertente no rap cuja função é de protesto social, ou como
incentivador para o crime. O rap em sua grande maioria traz letras de
libertação, problemas de ordem político-social, bem como ideias revolucionárias.
Como neste exemplo:
RAP DO VP
... Tenho
uma ideia a ser dada
Que tem que
ser escutada de coração
Alô
rapaziada... O lado certo da vida errada
De
consciência e razão
Que tá se
havendo
Vamos se
ligá
O inimigo é
o opressor que só faz se matá
Irmão negro
revolucionário
Eu não me
calo
O povo
clama pelos irmãos de frente
Vivem na
prática ser consciente
Mano
responsa não trás
Tem a
tranquilidade de resolvê conflitos
E a
fidelidade como os seus amigos
E paz,
justiça e liberdade
Tem que ter
fé em deus
O corpo
fechado
Para lutá
contra quem não está do nosso lado
Povo se
prepara para a luta
Contra o
governo racista, filha da puta
Irmão negro
revolucionário
Eu não me
calo.
(Caco Barcellos,
“Abusado, o dono do Morro Dona Marta” p. 497)
Em 1997,
São Paulo e o Brasil possuía o terceiro maior índice de homicídios das
Américas, a taxa de desemprego entre jovens da periferia que passava de 30% e
um habitante do bairro paulistano do Capão Redondo chegava a ter 12 vezes mais
chances de ser assassinado do que um morador de outra parte da cidade. Nesta
época, o universo do hip hop foi expandido após o lançamento do álbum
“Sobrevivendo no Inferno”, dos Racionais MC’s. Abriu espaço não só na
periferia, mas também nas classes médias em grandes áreas metropolitanas
especialmente de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Recife. Os principais
artistas desse movimento além dos Racionais são: MV Bill, Thaíde e DJ Hum, Xis,
Rappin’ Hood, entre outros.
Periferia é Periferia
Racionais MC's
Esse lugar é um pesadelo periférico
Fica no pico numérico de população
De dia a pivetada a caminho da escola
A noite vão dormir enquanto os manos "decola"
Na farinha... hã! Na pedra... hã!
Usando droga de monte, que merda, hã!
Eu sinto pena da família desses cara
Eu sinto pena, ele quer mais, ele não pára
Um exemplo muito ruim pros moleque
Pra começar é rapidinho e não tem breque
Herdeiro de mais alguma Dona Maria
Cuidado senhora, tome as rédias da sua cria
Porque chefe da casa trabalha e nunca está
Ninguém vê sair, ninguém escuta chegar
O trabalho ocupa todo o seu tempo
Hora extra é necessário pro alimento
Uns reais a mais no salário
Esmola de patrão cuzão milionário
Ser escravo do dinheiro é isso, fulano
Trezentos e sessenta e cinco dias por ano sem plano
Se a escravidão acabar pra você
Vai viver de quem? Vai viver de quê?
O sistema manipula sem ninguém saber
A lavagem cerebral te fez esquecer que andar com as próprias pernas não é
difícil
Mais fácil se entregar, se omitir
Nas ruas áridas da selva
Eu já vi lágrimas demais, o bastante pra um filme de guerra
Aqui a visão já não é tão bela...
Não existe outro lugar...
Periferia...Gente pobre...
Aqui a visão já não é tão bela...
Não existe outro lugar...
Periferia é periferia...
Aqui a visão já não é tão bela...
Não existe outro lugar...
Periferia...Gente pobre...
Aqui a visão já não é tão bela...
Não existe outro lugar...
Periferia é periferia...
Um mano me disse que quando chegou aqui
Tudo era mato e só se lembra de tiro aí
Outro maluco disse que ainda é embaçado
Quem não morreu, tá preso sossegado
Quem se casou quer criar o seu pivete ou não
Cachimbar e ficar doido igual moleque, então
A covardia dobra a esquina e mora ali
Lei do cão, lei da selva... hã... hora de subir
(Mano, que treta, mano! Mó treta, você viu? Roubaram o dinheiro daquele tio!)
Que se esforça sol a sol, sem descansar
Nossa Senhora o ilumine, nada vai faltar
É uma pena, um mês inteiro de trabalho
Jogado tudo dentro de um cachimbo, caralho!
O ódio toma conta de um trabalhador
Escravo urbano, um simples nordestino
Comprou uma arma pra se auto-defender
Quer encontrar o vagabundo desta vez não vai ter... "boi"
Não vai ter "boi" (Qual que foi?)
Não vai ter... "boi" (Qual que foi?)
A revolta deixa o homem de paz imprevisível
E sangue no olho, impiedoso e muito mais
Com sede de vingança e previnido
Com ferro na cinta, acorda na... madrugada de quinta.
Um pilantra andando no quintal.
Tentando, roubando as roupas do varal.
Olha só como é o destino, inevitável
O fim de vagabundo, é lamentável
Aquele puto que roubou ele outro dia
Amanheceu cheio de tiro, ele pedia
Dezenove anos jogados fora!
É foda, essa noite chove muito porque Deus chora
Muita pobreza, estoura a violência...
Nossa raça está morrendo mais cedo...
Não me diga que está tudo bem...
Veveve... verdade seja dita...
Vi só de alguns anos pra cá, pode acreditar
Já foi bastante pra me preocupar com meus filhos
Periferia é tudo igual
Todo mundo sente medo de sair de madrugada e tal
Ultimamente andam os doidos pela rua
Louco na fissura, te estranham na loucura
Pedir dinheiro é mais fácil que roubar, mano
Roubar é mais fácil que trampar, mano
É complicado, o vício tem dois lados
Depende disso ou daquilo ou não tá tudo errado
Eu não vou ficar do lado de ninguém por quê?
Quem vende droga pra quem? Hã
Vem pra cá de avião, pelo porto ou cais
Não conheço pobre dono de aeroporto e mais
Fico triste por saber e ver
Que quem morre no dia a dia é igual a eu e a você
Periferia é periferia... Que horas são, não sei responder...
Periferia é periferia... Milhares de casas amontoadas...
Periferia é periferia... Vacilou, ficou pequeno pode acreditar...
Periferia é periferia... Em qualquer lugar... Gente pobre...
Periferia é periferia... Vários botecos abertos, várias escolas vazias...
Periferia é periferia... E a maioria por aqui se parece comigo...
Periferia é periferia... Mães chorando, irmãos se matando, até quando...
Periferia é periferia... Em qualquer lugar.... Gente pobre....
Periferia é periferia... Aqui meu irmão é cada um por si...
Periferia é periferia... Molecada sem futuro eu já consigo ver...
Periferia é periferia... Aliados drogados...
Periferia é periferia... Em qualquer lugar.... Gente pobre....
Periferia é periferia... Deixe o crack de lado, escute meu recado... cado...
cado...
A letra dessa e de tantas outras músicas,
poemas e obras da literatura marginal contemplam vidas interrompidas em sua
possibilidade material e emocional. O modo como o autor expressa sua
infelicidade em relação à sociedade é resultado da insuficiência financeira e
também de carência de certos aspectos subjetivos como bondade, atenção,
cuidado, carinho, amizade, amor. Os autores contam suas experiências como
sobreviventes e testemunhas dos fatos ocorridos na periferia.
Caco
Barcellos, enfatiza a ideia da ausência de representação na favela Santa Marta
durante todo o contexto da obra. Por conta da morte precoce advinda da não
transmissão de experiência entre as gerações, dos embates pelo poder entre
grupos e do apagamento no sentido de história.
Fatos
que resultam no rebaixamento da autoestima, anomia e desenraizamento
comunitário.
Fato
esse que traz revolta. Albert Camus argumenta em sua obra sobre a revolta do
indivíduo “a afirmação implícita em todo ato de revolta se estende a qualquer
coisa que ultrapassa o indivíduo, na medida em que usa mesma revolta o arranca
à sua suposta solidão e lhe fornece uma razão para agir”. (Camus, O homem
revoltado. p. 28).
Por
toda essa reflexão em torno do pensamento de revolta de uma sociedade
minoritária, seja ela racial ou socioeconômica, trazemos a tona a literatura
voltada para a construção auto identitária, na contramão dos núcleos e das
imagens hegemônicas.
Nesse
contexto, há uma ligação entre as opressões periféricas e negras quanto à
violência. Tomamos como exemplo, a série de textos do paulista Ridson, atuante
no movimento Extremamente, de cordel urbano. Tratam-se de longos poema, com
metrificação distribuída entre decassílabos e outros versos maiores, combinados
em rimas regulares ou não, mesmo por assonâncias e aliterações, compondo uma
musicalidade forte e agressiva.
“Barraco
é cela, cadeia é favela / Viela é corredor, quarteirão é pavilhão e vice-versa
/ Que hora é essa? Interminável era / Mais de cinco séculos de plano Senzala se
completam // (...) Plano Senzala: a lógica do sistema / Pobres gladiadores se
matando numa arena / Irmãos divididos a fogo / Viciados, irados, armados. Povo
contra povo // A diária tortura não me retira a ternura / Resistência é minha
herança, minha cultura / Sobrevivo, resisto. É preciso / Sou o caco de vidro no
prato do inimigo”. (FERRÉZ, Literatura marginal: talentos da escrita periférica).
O
trecho acima faz referência a prisões e senzalas que seriam o sistema e a
resistência de um povo que luta constantemente por sua sobrevivência.
Literariamente,
classifica-se esse cenário refletido por Ferréz mais do que uma revitalização
do realismo, um realismo voraz (neo-realismo, hiper-realismo, e
ultra-realismo). Não se trata da linguagem em si, mas do estilo de linguagem
com o objetivo de protesto social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Entendemos
não somente a nomenclatura classificatória e identitária de marginal, mas
também o sentido da “problemática” de diversos ângulos.
Por meio de
experiências autências, nossos personagens nos auxiliaram a desvendar poemas e
obras diversas que exprimem literariamente a revolução das gerações
minoritárias.
Classificamos
de forma crítica, poemas e letras de música para uma visão mais ampla do
significado do estilo de linguagem realista.
Levamos
em conta artistas periféricos que exprimem o dia-a-dia das favelas e o sistema
no qual estão inseridos, por meio da revolta feroz das palavras e o poder que
elas tem de provocar reações, sentimentos e até mudanças na vida do leitor.